sexta-feira, novembro 11, 2005

Hotel Rwanda

Ano de 1994. Rebenta a Guerra no Ruanda.

Para termos uma ideia certa do que é uma guerra, tínhamos que viver uma. O que felizmente, não acontece em Portugal.

Por muito que veja nos média, sei que não tenho a mínima noção do que é uma guerra. E sei porquê. Agora, neste exacto momento, estou a escrever no meu PC, tenho uma aparelhagem áudio mesmo aqui ao lado que me custou mais de 2.000€ e para além da TV e do Vídeo, também tenho água para me lavar, e se tiver fome, vou ao frigorifico e sirvo-me do que me apetecer, e se quiser…

Sahira Mulehdin acordou de madrugada com um som ensurdecedor. Uma bomba havia rebentado a poucos metros da cumbikira* onde dormitava. Levantou-se com um salto. Lá fora podiam ouvir-se algumas pessoas que corriam em todas as direcções.
Sahira olhou pelo buraco que servia de janela. Zayyano, o seu vizinho, encontrava-se ajoelhado no chão tentando reanimar o seu filho de oito anos. Algumas casas encontravam-se completamente destruidas, restando apenas uma nuvem de pó iluminada pelas chamas. Sahira colocou uma mão no peito. A sua pequena filha Adama encontrava-se sentada no cesto que lhe servia de berço. Brincava com uma caneca de barro, Não chorava. A sua atenção era totalmente direccionada ao pequeno objecto que tinha entre mãos. Ouviram-se mais alguns estrondos, seguidos de gritos dos habitantes da aldeia. O primeiro gesto de Sahira foi pegar na sua filha ao colo, e correr em direcção à savana. No outro extremo da aldeia ouviam-se os guerrilheiros que acabavam de chegar. Sahira colocou-se no meio de alguns arbustos e aguardou pacientemente até que a manhã chegasse. O resto da noite foi passado a tentar abrigar a sua filha do frio que se fazia notar, enquanto se tentava acomodar na terra empedrada onde se tinha sentado. Antes do amanhecer, começou a chover impediosamente. Nada mais lhe restava senão tentar esconder Adama o melhor que podia. De manhã levantou-se devagar, tentando desentorpecer as pernas que quase não sentia. Com Adama nos braços onde dormia profundamente, foi desbravando o terreno por entre a lama e as ervas molhadas. Ao entrar na aldeia, algumas lágrimas decresceram da sua face. Só uma casa tinha ficado de pé. O resto da paisagem tornara-se repentinamente consternador. Algumas pessoas tentavam animar os feridos que se encontravam no chão frio. Não existiam medicamentos para os poder tratar, por isso para além de alguns panos por cima das feridas, só algumas plantas escolhidas pelo feiticeiro local pareciam atenuar as dores.

Uma senhora já com uma certa idade agarrou-se aos braços de Sahira, chorando e tentando obter uma explicação para o que havia sucedido. Não existia tal... Sahira acabara de perder tudo o que tinha. O seu mundo, como o conhecia, tinha mudado completamente. Não tinha roupa, não tinha loiça, não tinha nada senão o que trazia no corpo. E não tinha ninguem a quem se queixar. E agora?...

Hoje, posso imaginar-me na seguinte situação:

Estou em casa, são 21h, acabei de jantar, e sentei-me confortavelmente a ver TV. O ambiente é tranquilo e sereno, como o filme que estou a ver. Ao meu lado tenho um copo com um Chivas 12 anos, sem gelo, como se quer. A janela está semi-aberta e dela provém uma brisa suave, quase que feita à medida para entrar naquela sintonia ambiental. O filme é subitamente interrompido e uma cara conhecida do telejornal aparece com ar alarmado. Os olhos de choro, contrastando com o normal, dizem-me que o assunto é grave.
- Portugal entrou em guerra!! – são as suas primeiras palavras. (...) Quando acaba aquela breve intervenção, a televisão fica escura, e eu entro em pânico.
Os meus primeiros pensamentos são dispares, sem sentido, e eu com tanto que fazer, e sem saber por onde começar. A sala encontrava-se em silêncio, até ser quebrado por algumas aeronaves que sobrevoam muito baixo. Alguns segundos depois, a noite torna-se dia, seguem-se sons ensurdecedores e o cheiro a fumo instala-se junto com a poeira. Corro para a porta da saída, ainda sem saber para onde ir, e o que fazer... Já na rua, encontro o caos plenamente instalado. Carros batidos, casas que ardem indiscriminadamente e algumas pessoas, que como eu, ainda tentam saber o que aconteceu. Corro, sem saber para onde ir, e deparo-me com outras pessoas que correm na direcção contrária que também não sabem onde se dirigem... A poeira que paira no ar limita-ma os movimentos, e o cheiro a morte começa a fazer-se sentir, e eu continuo, ainda sem saber para onde, procurando talvez, uma realidade alternativa que me traga tudo de volta. Mais alguns aviões passam, e deixam um rasto de destruição atrás. O que antes era calmo, o que inspirava ao civismo, desapareceu.

Na minha cabeça, existem algumas perguntas: “Quem começou isto? O que terá motivado tudo isto? Porquê?...”

Sahira dirige-se agora ao Uganda. Caminha por uma estrada de terra seca, muito árida, onde a poeira com cheiro a fumo lhe invade a alma a cada passada. Deixou para trás uma vida, a sua. Agora, pergunta-se a quem pode pedir respostas, a quem pode perguntar se lhe vão restituir a casa, a roupa, e tudo o resto, e se quem começou tudo aquilo, lhe pode apagar as memórias de tão infeliz noite. Noite, noite que dificilmente se tornará dia.

*Cumbikira - Casa