sexta-feira, agosto 19, 2005

Viver na noite...

21:10h de sexta-feira, estação de comboios Oriente.
Estava confortavelmente sentado num dos bancos da estação, olhando para quem passava, enquanto aguardava o transporte. A noite encontrava-se fresca, e o vento que se fazia sentir fez-me apertar o casaco e esconder metade da face na gola. Tirando isso, até que estava muito bem disposto. Ouvi um som ao fundo, que infelizmente identifiquei logo à primeira. Era o som metalico de uma bengala que tacteava o chão de cimento. Um homem com oculos semi-escuros, avançava cautelosamente estação fora. Mas uma leve inclinação errada no trajecto fazia com que se aproximasse cada vez mais do fosso dos carris. Levantei-me e em passo apressado dirigi-me a ele com o intuito de o ajudar. Aproximei-me e apresentei-me com um simples boa noite, ao mesmo tempo que lhe segurei no braço. O homem respondeu à saudação da mesma forma, e eu perguntei-lhe onde desejava ficar. Soube então que esperava o mesmo comboio que eu. Encaminhei-o para perto de uma coluna a meio do cais, e longe dos carris. Agradeceu-me com um leve sorriso, e eu sentei-me novamente.
Alguns minutos depois, a luz forte da primeira carruagem já se avistava ao fundo. O também forte som que se aproximava, deixava indicar que já não demorava muito tempo até que fosse possivel a entrada no comboio. Levantei-me e dirigi-me até perto da linha amarela que demarcava a zona de segurança. O comboio foi parando vagarosamente até que estancou por completo. As pessoas dirigiram-se apressadas para a entrada, e só o homem se destacava dos demais. Parecia aguardar pacientemente que a confusão despairecesse. Depois, tacteando o chão, dirigiu-se para uma das enormes composições. Eu havia ficado perto de uma das entradas para poder ajudar se fosse necessário, mas o homem em movimentos quase mecanicos, entrou no comboio com bastante facilidade. Eu entrei na porta ao lado, mas continuava a observar o homem, nos seus movimentos que me pareciam tão faceis, embora ele não tivesse, o talvez mais importante dos sentidos. Sentei-me perto de uma janela, enquanto ele dobrou a bengala, e a colocou numa bolsa azul-escuro muito parecida com as dos chapeus de chuva. O comboio iniciou a sua marcha devagar, e à medida que ganhava velocidade, olhei para a janela, e fiquei a pensar como seria viver assim… Pensei que com a facilidade com que o homem se movia por entre os obstáculos, só poderiam existir duas hipóteses: ou havia perdido a visão há muito tempo, ou nunca a tivera. Decidi fazer um pequeno teste: fechei os olhos, e imaginei-me a ter que sair do comboio assim. Garanto que mesmo que a distância fosse curta, não me parecia tarefa fácil. Quanto mais ter que me dirigir ao meu destino naquelas condições.
Alguns dias depois, e após me ter deparado com uma situação idêntica, mas desta vez na televisão, decidi fazer outro teste mas mais completo. Encontrava-me no meu quarto, e depois de fechar os olhos, tentei fazer algumas coisas simples. Desde ligar o rádio, identificar, e tentar vestir algumas roupas, e simplesmente mover-me por entre todos os móveis cuja disposição eu já conhecia tão bem. Mas apesar de parecer uma taréfa fácil, garanto que o resultado final foi desatroso… Depois fiquei a imaginar na sorte que tenho ao poder usufruir de todos os sentidos.

Não existem, infelizmente, muitos cómodos para as pessoas deficientes. Desde rampas de acesso, a sinais sonóros nos semáfros, e a um sem numero de coisas que para mim são banais. Também não me parece que exista uma grande pressão por parte das identidades competentes, para que se comecem a notar algumas alterações nesse aspecto.

Por isso, e infelizmente, reparo que é muito facil esquecer-mo-nos dessas pessoas. Só nos lembramos quando esperamos o comboio, ou reparamos na ginástica necessária que é precisa para subir dois degraus.

3 Comments:

Blogger Sandman said...

Pois é, Jo, tens razão quanto ao apurar dos sentidos. Mas por muito apurados que fiquem, não é ouvir uma gargalhada que mostra os olhos brilhantes da pessoa que ri, não é o ouvir das ondas que lhe descreve o mar, nem é o calor na face que vai descrever o por do sol.

Jinhos.

23 agosto, 2005 13:28  
Blogger Maria Arvore said...

3 coisinhas:
-parabéns atrasados: os teus, shame on me;
- parabéns por um ano de blog e para a frente é que é caminho!
- quanto aos problemas dos deficientes deste país, eles são muitos e passam essencialmente pelo facto de a maior parte das coisas serem feitas para as maiorias e ser esquecido o direito à qualidade de vida das minorias. Curioso e corajoso foi a tua atitude de procurar experimentar o que é estar na pele do outro. Se a maior parte de nós fizesse isso, e sobretudo quem tem responsabilidades de poder e decisão, julgo que as minorias seriam mais respeitadas. :)

23 agosto, 2005 18:51  
Blogger Sandman said...

Maria, obrigado. Já passou mais um anito. Desculpa(em) se não me lembro das vossa datas, mas sou péssimo nessas coisas (a sério, acreditem, não faço por mal). E o meu bloguito, hein?? Já conta um anito... Em nome dele, agradeço-vos (Jo e Maria). Ainda farei um post comemorativo.
Jo, eu entendi o que querias dizer, mas discordei no aspecto da "felicidade", pois sei que a maioria acaba (que remédio) por se conformar. E agradeço-te também os parabéns para o blog, porque sei que te lembraste no dia seguinte. Valeu. :o)
Beijos, abraços, e essas coisas do fim das cartas..

24 agosto, 2005 13:23  

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