terça-feira, setembro 21, 2004

Ilusões

Vivemos com a esperança de podermos atingir alguns objectivos. Alguns materiais, sim, mas os mais importantes não têm preço… São os que nos preenchem totalmente. Somos muito sociáveis, e para que esses objectivos sejam alcançados, tem que existir uma outra pessoa. Gostamos de lhe chamar, “a outra metade”. É sempre complicado saber se é esta, ou aquela pessoa… Mesmo depois de a conhecer-mos. Também vai depender de como estamos a encarar a situação, de como queremos que corram as coisas. O mais fácil, será talvez fechar os olhos a certas coisas, e abri-los muito para outras. E quando uma destas se sobrecarrega, as coisas podem correr mal. Continuo a pensar que sim, que é possível. Aliás, que seria de nós se não acreditássemos? Que estaríamos nós a fazer aqui? É bom quando acordamos de manhã, e temos os nossos 100% deitados na mesma cama, a partilhar algo que julgamos ser só nosso, algo que mais ninguém tem. Os pássaros voam alegremente, as crianças sorriem, brincam. E apetece-nos dizer bom dia a toda a gente. Mas nem sempre as coisas correm como queríamos que corressem. Tudo parece desabar, tudo se altera. Os pássaros voam para sul, as crianças choram, já não existe nenhuma brincadeira que achemos engraçada, e as outras pessoas, as pessoas, são só as outras pessoas.
Bem, passado algum tempo, podemos vermo-nos a emergir, a ver um ou outro pássaro a sobrevoar o nosso céu novamente. Talvez consigamos parar para ver uma criança, talvez até possamos ver pessoa na rua, dizer-lhe bom dia, e sentir o que dizemos…
Tempo é o único remédio que existe, e esse mesmo tempo, vai depender de como sentíamos esses tal de 100%... Muito, pouco, ou era uma ilusão?... Tempo, tempo que gostávamos que passasse mais depressa, que o pudéssemos passar sem ouvir as suas badaladas. Também não existe nenhuma data marcada, nenhum tempo específico para atingir os objectivos. Apenas não nos podemos esquecer dos pássaros que voam, das crianças que brincam, e de dizer bom dia a todos, e sentir, sentir que vai ser um dia bom.

 

sexta-feira, setembro 17, 2004

Ventos Salgados

Desci a rua de uma forma apressada, fechado nos meus pensamentos. As pedras azuis que passavam por baixo dos meus pés, eram a única coisa que eu olhava com atenção. Existem coisas que gostamos menos de fazer, e ter que me deslocar a uma distante vila pesqueira por motivos burocráticos, era uma delas. Para além de ser uma vila bonita, já pensava que o meu dia estava estragado. Aquela manhã de Outono, já não se podia alterar…

Mas eis que algo me fez mudar de ideias… Fiquei parado por alguns segundos para tentar perceber. Olhei em volta. Não eram as casas velhas com vasos nos beirais, não eram as pessoas que passavam, envoltas nos seus afazeres… Sorri. Era o mar. O cheiro do mar. O perfume do mar invadira-me as narinas, e fizera-me parar.




Decidi fazer-lhe uma humilde visita. Desci uma rua pequena, apertada, e deparei com uma visão magnífica. O senhor mar. Cheguei-me para mais perto das rochas, e olhei as pequenas ondas que batiam no ancoradouro, de uma forma sistemática, mas que não cansava a vista. Podiam-se ver algumas embarcações que flutuavam docemente, ao sabor dessas mesmas ondas. Os barcos variavam muito de formas e feitios. Alguns eram grandes, majestosos, e outros mais pequenos, mas igualmente bonitos.

Uma pequena multidão dirigia-se ao porto, que ficava mesmo ali ao lado. Olhei, e percebi que uma embarcação de pesca havia retornado de mais uma ida ao mar. As mulheres vestidas de preto, com canastras de vime, velhas e cansadas, dirigiam-se ao encontro dos destemidos pescadores.

Já à muito tempo que não assistia à chegada de uma traineira, e decidi matar saudades. Fui andando devagar, pois não queria atrapalhar. Enquanto andava, vi também um bando de gaivotas, que voavam por cima dos pescadores, à espera dos tradicionais restos de peixe deitados ao mar. Podia agora ver algumas redes, amontoadas num canto, emaranhadas em algas, algum lixo, e um outro tipo de planta que não conseguia identificar.

Ao chegar, podia ouvir as breves frases dos pescadores, que comentavam a sua última ida ao mar. As mulheres, ajeitavam-se no pequeno porto para poderem ajudar a descarregar os cestos que ainda se encontravam no convés. A quantidade de peixes nos mesmos não era muita, mas compensava em variedade. Peixes de várias formas, cores, mas sempre com o mesmo brilho, permaneciam inertes à espera que os encaminhassem para a sua última mas nobre tarefa.

Três homens saíram do barco, e cumprimentaram as mulheres, de uma maneira rude, mas podia ver-se satisfação nos seus olhares. Seria por estarem novamente perto dos seus entes queridos? Seria por sentirem novamente o chão sólido debaixo dos pés? Seria por agora poderem ser compensados com dinheiro, da dura vida que levavam? Penso que não era de deixarem o mar. Ninguém pode deixar de gostar do mar. A sua imensidão, a sua beleza inigualável, todo o mistério que os envolve, aquela coisa que não se explica mas se sente diante da sua presença, ninguém deixa de gostar…

Os cestos começaram a voar. Em movimentos quase mecânicos mas muito bem ritmados, para fora do barco. Braços escuros, queimados pelo sol, de mangas arregaçadas, faziam agora o último esforço para a recompensa final. Podiam ver-se pedras de sal grosso espalhadas pelo chão do cais. A sua cor branca contrastava perfeitamente com a cor escura das tábuas que constituíam o cais. Passei pelos pescadores, e continuei em frente.

Agora, quase em silêncio, ouvia o ranger que fazia ao dar mais um passo no cais. Para além do cais já se encontrar bastante dentro de água, permanecia imóvel, sentia-se sólido, seguro. Cheguei ao fim do mesmo, e olhei o horizonte distante. Sentia-me tentado a explorar tudo o que conseguia ver, e mais ainda.

Sentei-me no último pilar, e sorri. Mais uma vez. Agora, a admirar tamanha beleza. A espuma branca que nascia aquando o embate da agua na madeira dos cascos dos barcos presentes. Barcos fortes, e feitos para durar. Com cores alegres, vivas, que faziam o perfeito contraste com a vida por eles levada.

Sentia-me bem, agora. O senhor mar tinha despertado em mim, uma vontade de andar, de viver, de saber que por vezes, nos queixamos de coisas fúteis, quando na realidade, temos coisas mais importantes para pensar, e coisas das quais nos devíamos importar mais, mas achamos sempre que é um “porto seguro”, afinal, o mar está sempre lá, não nos devemos importar com isso, ele não vai a lado nenhum. O mar está sempre lá, e nós? E nós já dissemos aos mares das nossas vidas que não vão estar sempre cá, o quanto gostamos deles? O quanto os admiramos? O mar está sempre lá, mas eu nem sempre lhe digo o quanto eu gosto dele.

 

sexta-feira, setembro 10, 2004

Turismo à portuguesa

Artur Varatojo

Um carro de matrícula francesa pára junto de uma velhota que assa sardinhas à porta de casa. É um casal novo, simpático, que nos visita pela primeira vez. O mapa das estradas parece insuficiente para orienta-los na direcção da almejada Nazaré.
Nazaré é uma palavra internacional que nem as mais arrevesadas pronúncias conseguem deturpar. O dedo magro estende-se na direcção da rota certa, mas a jovem francesa, ao sair para desentorpecer as pernas, aspira o cheiro das sardinhas numa expressão de prazer poliglota que a velha entende.
Entra rapidamente em casa e volta com um enorme pão caseiro e uma faca que limpa ao avental. O canto é para a menina, a fatia seguinte para o marido ou noivo! Duas sardinhas loiras, seguras pelo rabo, vêm dormir sobre o pão trigueiro. Os franceses entreolham-se sem compreender, mas o sorriso da anfitriã e as mãos pousadas nas ancas estimulam-nos. Comem à mão, com gritos de prazer ao queimarem os dedos na primeira tentativa. A velhota reserva-lhes uma nova surpresa. São agora duas canecas de tinto que espumam… para rebater!
Ao vê-lo levar a mão ao bolso, a dona das sardinhas julga que ele procura um lenço para limpar as mãos, e quando o vê extrair a carteira, fita-o como se empunhasse uma arma.
- Não senhor! Não é para pagar! É dado!
A mão bate no peito, no sítio do coração, para se fazer entender. A recusa é formal, evidente. Eles não têm outro remédio senão compreender. Acabam de chegar a um país onde o povo faz relações internacionais por instinto. Vem lá de dentro, do peito, do coração.


Artur Varatojo, Varatojo Conta-lhe